
Clarice está aqui, me encarando de frente. Hoje, certamente ela me diria: "reage, mulher, bota um cropped".
Clarice está aqui, me encarando de frente. Hoje, certamente ela me diria: "reage, mulher, bota um cropped".
Alerta de textão
[…] Só estou triste hoje porque eu estou cansada. De um modo geral eu sou alegre […]
(Entrevista de Clarice Lispector, concedida em 1977, ao repórter Júlio Lerner, da TV Cultura.)
Clarice é tão atemporal que me faz imaginar o que ela escreveria e falaria sobre esse tempo sombrio que estamos enfrentando – chamo-a de Clarice como quem tem intimidade, sim, somos íntimas, há momentos que somos apenas nós duas.
Estou cansada, repito frequentemente, talvez você também. Exaustão física e mental. Não tem como fazer de conta ou forçar um riso quando se quer chorar. Bagunça interna. Caos mundial. No Brasil a crise política, econômica, social, ambiental, sanitária, educacional me causa mais incomodo. Às vezes penso que nada pode ser feito. A desigualdade escancarada. A violência gratuita. A meritocracia pungente. A discriminação velada. Me recuso a chamar o atual representante do país de presidente, não consigo nomeá-lo para além de genocida manipulador mentiroso. Tenho medo do que virá ou se virá. Estou cansada.
Ah, Clarice, você faz falta…
[…] só estou triste hoje porque eu estou cansada. De um modo geral eu sou alegre. Clarice Lispector, em entrevista ao jornalista Júlio Lerner.
“Estava à espera. Com os sentidos aguçados pelo mundo que a cercava como se entrasse nas terras desconhecidas de Vênus. Nada aconteceu”. (Clarice Lispector. Uma aprendizagem ou o livros dos prazeres, p. 30)
imagem arquivo pessoal, 2021.
[…]
Assombrada pelos meus fantasmas,
pelo que é mítico e fantástico
– a vida é sobrenatural.
E eu caminho em corda bamba até o limite de meu sonho.
As vísceras torturadas pela voluptuosidade
Guiam-me, fúria dos impulsos. Antes de me organizar,
tenho que me desorganizar internamente.
Para experimentar o primeiro e passageiro
estado primário de liberdade.
Da liberdade de errar, cair e levantar-me.
Sei que é madrugada, o quarto ainda está escuro, mas os pensamentos já despertaram aqui dentro. Fizeram tanto barulho, e como uma música alta, despertaram a casa toda. Para Clarice Lispector, sábado é a rosa da semana, mas nada a impede de pegar suas coisas e se mudar para o domingo de manhã. Domingo de manhã, para ela, também pode ser a rosa da semana. Hoje me “mudei para o domingo”, igual a Lispector, quem sabe ele também seja a minha rosa da semana?
Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.